20020912

a história da semente

gostaria de me ver um animal. um animal grávido, com pêlos, com pele, animal que tem sangue, animal feminino. insconsciente e desesperada como irracional, ou quase, humana. correndo em busca de um ninho, coisa assim, um prédio de apartamentos. ou cachorro que late pela sua fêmea, pela sua melhor alternativa. eu queria me ver raivosa e determinada, com o objetivo de passar na seleção natural das espécies.
devia ser um bicho grande, acho que os bichos que nascem grandes são assim porque não têm medo.
eu certamente seria um bicho de dentes afiados pelo menos, e a esta hora estaria me mordendo inteira por não conseguir, por fracassar e ficar olhando meus semelhantes profeticamente instalando sementes uns nos outros. eu estou seca e só tenho a minha própria dor, a mágoa que corrompe o meu semblante, a cara de amargura. eu transpiro abandono, eu transpiro tristeza. dessa vez, todo o meu óvulo foi perdido e é coagulado agora, útero vazio, cheio de desperdício. aumento o som, aumento. nada pode soar mais alto que isso? por favor, eu preciso estar surda. durante três dias eu vou velar a morte do meu futuro, aquele que não foi, e rezar por sua alegria num mundo paralelo. porque o que fica podre serve de adubo e esse futuro, o morto, está agora em outra dimensão, vive sem sentir a minha falta. aos que ficam na terra resta o uivo, a mordida na própria carne, resta o oco. é o destino das mulheres, dos seres femininos: espera-se mais um mês e tudo começa novamente. não sem razão eu vou povoar o mundo. a cada mês eu vou tentar, é uma ordem da natureza. e só às vezes lembrar dos filhos que perdi.

"cada homem é feito como se fosse o último, com potencial para repovoar o planeta."
[frase de elsimar coutinho, o doutor da não-menstruação.]

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