jogaram meu papel no lixo.
era uma certidão de nascimento.
jogaram fora o que eu era,
deixaram algo muito mais vazio.
algo que não chora,
algo que não sente, que não se apavora.
deixaram algo que não teme, que não se importa.
ninguém, em resumo.
não se é cidadão sem essa certidão.
não deixaram ninguém,
ou alguém tão indigente quanto seu próprio sentido
no mundo.
que diferença faz mais um amor que morreu?

amanhã é dia de finados,
algumas pessoas vão ao cemitério.
que diferença fez mais um amor morto?

ontem foi dia de eleição.
não se pode ser cidadão sem ter um nome.
não fui votar, não me chamo mais nada.

alguma coisa dentro do coração morto
pulsa, doendo.
alguma coisa dentro do coração que nasceu morto
pulsa, esquecendo.

*-*-*

mas hoje é dia de festa,
são setenta e oito.
passou a febre tifóide, passou o câncer.
passaram os anos, os problemas.
ela hoje são setenta e oito vezes
trezentos e sessesta e cinco.
e isso importa.